Eva inventou a maçã?
O papel ocupado pelo feminino no imaginário social
Conta a história que Eva inventou a maçã. Pelo menos, é o que Rita Lee canta em sua canção Elvira Pagã, de 1979, em mais um ato de ironia genial da rainha do rock para escancarar uma hipocrisia da nossa sociedade.
Todos os homens desse nosso planeta
Pensam que mulher é tal e qual um capeta
Conta a história que Eva inventou a maçã
Sob esse olhar, o alvo de Rita são os séculos de culpa terceirizada à figura do feminino, que na raíz da tradição cristã, é responsabilizado pela expulsão de toda a humanidade do paraíso. A queda do homem do Jardim do Éden é, dessa forma, retratada como uma consequência infeliz — e até mesmo injusta — das ações de Eva, a mulher precursora do pecado.
A história, porém, não ficou parada no Jardim. Esse enredo bíblico atravessa séculos como se fosse um script de moralidade: a mulher aparece sempre entre dois polos inconciliáveis, o da santa, que deve ser pura, ou a pecadora, que corrompe.
No livro Adão, Eva e a Serpente (1988), a historiadora Elaine Pagels discorre sobre como nos primeiros séculos muitos cristãos interpretavam o enredo de Gênesis como parábola da liberdade humana; foi apenas com a virada agostiniana que a ênfase se redefiniu para a doutrina do pecado original. Esse enquadramento pavimentou séculos de disciplina do corpo, do desejo e da fala das mulheres.
Madonna–whore complex: Ser puritana ou vulgar?
A letra de Rita ainda faz sátira da prateleira de estereótipos onde se penduram as mulheres, desmontando o catálogo de moralismos que nos mede do decote ao comportamento.
Dama da noite não dá pra confiar
Cinderela quer um sapatão pra calçar
Noiva neurótica sonha com o noivo galã (um lixo!)
Amiga do peito fala mal pelas costas
Namorada sempre dá a mesma resposta
Foi-se o tempo em que nua era Elvira pagã
Inclusive, o título da canção faz referência direta à primeira rainha do Carnaval carioca, a atriz e cantora Elvira Pagã, lembrada como a primeira mulher a usar um biquíni na América do Sul.
A cisão “santa/puta” tem até um nome técnico: Madonna–whore complex. O termo usado por psicanalistas e que se popularizou na metade do século XX, surgiu a partir de um conceito explorado por Freud em 1912, que descreve como alguns homens se veem incapazes de conciliar amor terno (vinculado à mãe, à esposa “respeitável”) com desejo sexual intenso (dirigido a prostitutas, amantes, mulheres tidas como “desqualificadas”).
Segundo ele, essa divisão entre o amor e o desejo gera uma tendência à degradação do objeto amoroso — no caso, da própria percepção do gênero feminino — separando a mulher venerada da mulher desejada, o que cria um eterno sentimento de insatisfação e insuficiência.
Esse binarismo organiza normas sociais inteiras, fortalecendo a persistência de um duplo padrão sexual, conforme observou o sociólogo norte-americano Ira Reiss em um estudo de 1960 que analisou dados de surveys nacionais e entrevistas qualitativas para entender os valores e as normas que orientavam o comportamento sexual de jovens nos EUA.
Os resultados obtidos por Reiss apontavam que comportamentos idênticos eram julgados de modo mais severo quando manifestados por mulheres do que por homens. Enquanto eles eram encorajados a manterem relações sexuais casualmente, delas era esperado que a vida sexual fosse reservada apenas ao casamento, e sua reputação moral e conjugal era ameaçada caso praticassem sexo antes do matrimônio.
Nos anos 1990, um capítulo específico deu musculatura moderna a essa moral: a “purity culture” evangélica — anéis de pureza, bailes de virgindade, promessas de abstinência — que associou valor feminino à castidade e vinculou honra familiar ao controle da sexualidade das meninas.
“Ela” sempre é o bode expiatório
O mecanismo de culpar o feminino por “introduzir o mal” é mais antigo que Gênesis. Em Hesíodo, Pandora abre o jarro e derrama todos os males sobre a humanidade. De novo, a mulher é o gargalo simbólico do infortúnio coletivo.
No folclore judaico medieval, Lilith encarna outro medo: a mulher que se recusa a subordinar-se, abandona o Éden e vira demônio nas bocas masculinas. Releituras feministas contemporâneas resgatam Lilith como emblema de autonomia, revelando menos “natureza demoníaca” e mais pânico social diante do desejo e da igualdade.
A psicanalista brasileira Maria Homem trabalha em algumas de suas obras a ideia de que a mulher é, no imaginário social, quase sempre representada como o “Outro” perigoso: aquela que pode desestabilizar a ordem, fazer o sujeito sair da linha, arrancá-lo da norma.
Na canção O Quereres, Caetano Veloso escreveu: “Onde buscas o anjo, sou mulher”. Essa recusa ao etéreo e angelical consagrado ao feminino é um não performático ao roteiro que oferece apenas dois papéis às mulheres: o de candelabro moral ou o de bode expiatório erótico. Nesse espaço, abre-se a fenda onde a sociedade insiste em enfatizar culpas e vigilâncias.
Na contemporaneidade, psicólogos alertam para as consequências da vergonha sexual imposta estruturalmente às mulheres: O “slut shaming” produz sofrimento psíquico, piora a função sexual, aumenta ansiedade e afeta a autoestima, sobretudo entre meninas e mulheres jovens.
Não à toa, hoje existe um controverso — porém consideravelmente numeroso — grupo de mulheres que reforçam um estilo de vida tradicionalista, baseado na submissão feminina e na exaltação do papel doméstico. As “tradwives” tomaram conta das redes sociais, com discursos e comportamentos que reforçam a dominância masculina. Elas funcionam como atualização da fábula: personagens que, sob a máscara da escolha, reiteram o enredo da docilidade e da obediência como destino “natural” do feminino.
E então: Eva “inventou” a maçã?
A profundidade da pergunta de Rita Lee está em inverter a questão e perceber que não foi Eva quem “inventou” a maçã; foi a sociedade que inventou uma Eva para justificar a lógica hierárquica que mantém o patriarcado, onde as mulheres precisam ser submetidas e domadas às vontades e escolhas dos homens, e que isso seria para o “seu próprio bem”.
A maçã é só o acessório de uma máquina que serve à lógica hierárquica da nossa sociedade: mitos que culpam o feminino por nossos males coletivos, por meio de uma estratégia que santificar ou degrada a figura da mulher.
O feminino é convocado a ser tudo, mas nunca a ser ele mesmo. Entre a pureza impossível e a vulgaridade projetada, a saída é a terceira margem: mulher como sujeito — não anjo, não demônio — com desejo, voz, ambivalência e história.
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A carne só cai no prato do vegano mesmo né? Eu mesmo particularmente amo mulheres e amo maçãs, se eu sou Adão e a Eva me chega do nada com uma maçã séria ali mesmo que começaria o matriarcado, faria tudo que ela quisesse na hora!!!
Ótimo texto, como sempre.
ai que lindo que colocou a canção de Caetano, sempre pensei sobre. arrasou!!